terça-feira, 17 de setembro de 2013

“O Menino que reclamava de barriga cheia”

O ano era 1.976.

O menino caminhava pelas ruas de Buenos Aires. Com seus doze anos de idade, o menino estava triste porque seu pai, um militar que trabalhava para o governo do seu país, tinha recusado a compra de um novo tênis, e um carro miniatura da época.

Uma mistura de tristeza, angústia e raiva do pai que tinha negado o seu pedido. Já eram quase dez horas da noite, e  o moleque já estava há uma dez quadras de sua casa, que ficava em um bairro bom, de classe média da cidade.

No momento, ele estava em um bairro periférico. Quando começa a ouvir gritos de crianças e adultos, barulhos que entravam no seu ouvido como se fosse um tapa de mão aberta.

O menino se esconde e na frente da casa, um carro com os mesmos escritos que tinha no carro de seu pai.

Na hora, sai um casal  e um bebê. O casal fora levado a um beco sem saída na rua ao lado. Vários tiros precedidos de um silêncio ensurdecedor... O bebê é levado para dentro do carro. Todos entram no veículo e aceleram como se tivessem no Autódromo Oscar Alfredo Galvez.

O menino assustado se aproxima da casa, vai para o beco e não vê nenhum corpo, só várias poças que no escuro não conseguia distinguir o que era.

O moleque sai rapidamente do beco e dentro de uma latão de lixo ouve um barulho de choro bem baixinho, bem baixinho.  O menino se aproxima e sussurra Só estou eu aqui”. 

Após 30 segundos, dentro da lata levanta uma menina, cabelo loiro com olhos verdes lacrimejantes. A menina olhava para o menino, aquele olho esverdeado penetrava na cabeça do moleque como se fosse uma agulha, como se eles falassem e perguntassem para ele  “O que fizeram com a minha família, cadê minha irmã, os tiros foram contra meus pais? “.  

No mesmo momento, o menino vê um carro parecido com o seu pai de novo. Ele enfia a cabeça da menina dentro da sala de lixo e sai  correndo do beco. Três quarteirões do beco, estava seu próprio pai procurando que nem louco ele.

O menino olha para o pai, que estava com as mesmas vestimentas daqueles homens no beco, e só consegue enxergar o olho verde daquela menina dentro da lata de lixo.

O moleque volta para a casa quieto.

Na hora, veio  aquela sensação, que até uma criança de 12 anos poderia perceber. Como ele poderia, momentos antes, estar reclamando porque não tinha conseguido um tênis e aquela menina perdido nada mais nada menos do que toda sua família.

O menino na inocência e pureza dos seus doze anos sentia uma tristeza tão grande e uma sensação de raiva dele mesmo por estar preocupado com o brinquedo que o pai negara no mesmo dia que tinham sumido com a família da menina do lixo .

Depois daquele dia, o menino nunca mais reclamaria de barriga cheia.

O menino foi crescendo e percebendo o que realmente seu pai fazia e para quem realmente trabalhava.  E aos poucos foi se distanciando da sua família. Sem briga, sem alarde. Mudou para a Europa, se formou jornalista e virou correspondente esportivo do Clarin. 

Nove anos depois do acontecido no beco, recebe o telefone da sua mãe comunicando o falecimento de seu pai. O ano era 1.985 e o menino já era um rapaz que tinha encontrado uma bióloga espanhola e tinha casado em Madrid.

Após uma semana do funeral do seu pai,  ele e sua esposa resolvem ir ao cinema. Em cartaz, La História Oficial.



O filme argentino, que estava na sua  estréia em seu país, contava  a história de uma professora da classe média argentina que descobre que a criança que tinha adotado poderia ser filho de presos militares da ditadura sanguinária da Argentina e do Cone Sul.

O desfecho do filme, que ganhou Oscar de Melhor Filme Estrangeiro daquele ano, é a menina que havia morado a vida inteira com o casal, ligado ao governo militar, acaba encontrando sua avó biológica em uma manifestação das Mães da Praça de Maio, entidade formada por mulheres que se reuniam na Praça de Maio exigindo notícias de seus filhos e netos desaparecidos na época da ditadura militar.  



Saindo da sala de cinema, muita gente se abraçando, famílias reunidas emocionadas. Afinal, era a semana da estréia do filme  no país, após um ano do fim da ditadura.

O rapaz e sua esposa  chamam um táxi e adentrando ao carro, ele olha para o seu lado direito e vê entrando no táxi ao lado uma menina loirinha de aproximadamente nove anos.

E ele olha para cima, uma moça com o cabelo bem curto, loiro mas com um olho que ele reconheceria mesmo estando com um grau máximo de miopia. Aquele olho verde da lata de lixo. A moça, nove anos mais velha, diferente, mas o olho inigualavelmente igual.

Ela olha para ele atentamente, abre um sorrisso e acena a cabeça para a baixo e para cima, com um sinal positivo e como se tivesse dizendo sem dizer, como dentro do latão de lixo, "No final deu tudo certo". E entra no carro.

Aquele jornalista se desembesta de chorar. A esposa não entende nada. Na mesma hora, ele pede para o taxista leva-los ao beco onde tudo tinha acontecido no ano de 1.976, para contar a história para a sua companheira.

História esta que o levou a pensar e levar a vida completamente diferente, a dar mais valor as coisas do coração, sem se importar tanto aos bens materiais ou dar o tamanho necessário do valor que os bens materiais precisam ter dentro da vida de cada um.

É, depois daquele beco, daquela menina de olhos verdes, o menino virou homem e não reclamou mais de barriga cheia.  E contou esta história para todos os seus três filhos.

E aquela menina de olhos verdes achou sua irmã no final da ditadura, em 1.984, e atualmente vivem felizes na democracia de Buenos Aires.

E no final, deu tudo certo para as duas crianças daquele beco de 1.976.
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Este provavelmente seja  o primeiro texto narrativo no blog envolvendo personagens que não são reais, mesmo se tratando de momentos históricos que aconteceram como sumiço de crianças na época da ditadura militar do Cone Sul, a existência do trabalho das Mães da Praça de Maio e o filme La Historia Oficial . 

A história é dedicada a recuperação de Renan Suconic Resende que sofreu um grave acidente na madrugada de sexta e que está lutando para se recuperar. É que peguei várias  pessoas reclamando da vida hoje (inclusive eu) e ele na Santa Casa numa luta enorme para recuperar a vida.

Força TG

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